segunda-feira, 21 de março de 2011

Em breve, pais decidirão: dar uma pilha de livros ou um tablet aos filhos

Acervo, em formato digital, de obras voltadas a crianças e adolescentes cresce. Para educadores, leitura no dispositivo não traz prejuízos ao aprendizado.

Nathalia Goulart

O escritor italiano Italo Calvino dizia que clássicos são os livros que propagam valores universais e despertam emoções que, a despeito do tempo decorrido desde a leitura, jamais são esquecidos. "Constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado", escreveu. Cientes dessa riqueza, geração após geração, muitos pais se preocupam à certa altura da vida em reunir esse tesouro em uma estante, presenteando os filhos com uma seleção dos melhores livros. A tecnologia vai adicionar, de maneira crescente, uma questão a essa tarefa: franquear aos filhos uma coleção de livros ou um tablet ou e-reader, o leitor de livros digitais (ebooks), aos quais clássicos e outras tantas obras podem ser adicionados?

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Sim, muitos clássicos já estão disponíveis para tablets e e-readers, muitos mais estão a caminho e o mesmo vale para obras contemporâneas que servem à formação e ao deleite de crianças e adolescentes. Em língua portuguesa, já é possível ler nos dispositivos fábulas narradas pelos irmãos Grimm, A Menina do Narizinho Arrebitado, de Monteiro Lobato, e as instigantes aventuras de Julio Verne, como Viagem ao Centro da Terra, entre outros – confira a relação, acrescida de livros de leitura obrigatória da Fuvest. É apenas uma pequena parcela do que já se faz em língua inglesa, por exemplo, que conta com milhares de obras prontas para a leitura. "Estamos próximos da virada digital", afirma Mauro Palermo, diretor da Globo Livros, que até o fim deste ano vai colocar nos tablets todo o seu acervo infanto-juvenil – incluindo os clássicos assinados por Monteiro Lobato. "É um caminho sem volta", diz.

A ideia de tirar o tradicional livro impresso das mãos das crianças e trocá-lo por um iPad, da Apple, ou similar pode assustar os pais. Mas não causa a mesma reação nos estudiosos. Para estes, não existem restrições para leitura na nova plataforma. "O universo digital exerce fascínio nos jovens e, com ajuda dos tablets, pode apresentar a leitura para esse público de forma surpreendente", afirma Marcos Cezar Freitas, pedagogo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Continue a ler a reportagem


Crianças com iPad
(Thomas Tolstrup/Getty Images)

Ismar de Oliveira Soares, coordenador do Núcleo de Comunicação e Educação da Universidade de São Paulo (USP), vai mais longe. Ele acredita que o dispositivo eletrônico se coloca, com sucesso, como alternativa ao formato secular do livro impresso em papel. "Trata-se de um novo mundo", diz. A principal vantagem, na visão dele, é a praticidadea capacidade dos tablets e e-readers de "carregar" centenas e até milhares de obras. Isso, é claro, facilita a vida de todos os usuários, mas especialmente das crianças e adolescentes, sempre às voltas com pilhas de obras de leitura obrigatória. "Se é possível carregar diversos livros em um único aparelho, por que não aproveitar essa facilidade?" Do ponto de vista do ensino, não há perdas para o aprendizado, defende Soares. "O que importa é o que se lê. Não onde se lê."

Não há razões pedagógicas, portanto, para as editoras pouparem esforços na transposição de suas obras para o formato digital. Elas agora estão de olho nas razões de mercado – e elas são animadoras. Em 2010, os brasileiros importaram oficialmente 64.000 iPads, segundo dados da Receita Federal – isso não incluiu aparelhos que cruzaram a fronteira na bagagem de turistas que voltaram ao país, nem rivais como o Galaxy Tab, da Samsung, ou e-readers. A expectativa é que até o fim deste ano sejam vendidos mais 300.000 aparelhos da Apple por aqui. Some-se a isso os dispositivos das demais marcas e também os leitores de ebooks. "Nossos investimentos estão crescendo de acordo com a ampliação do mercado consumidor", diz Breno Lerner, superintendente da Editora Melhoramentos. Por ora, a empresa já oferece versões digitais dos livros de Julio Verne e Ziraldo, além da coleção Sherlock Holmes.

A Abril Educação – grupo que reúne as editoras Ática e Scipione e é controlado pela família Civita, que também é dona da editora Abril, que publica VEJA – é outra que vai reforçar o acervo disponível para crianças e jovens. A empresa em breve colocará nas mãos dos jovens leitores obras de autores cujo leitura tornou-se quase compulsória no país, caso de Ana Maria Machado e Marcos Rey. "As novas plataformas, como os tablets, são um desafio do qual não vamos nos furtar", diz Ana Teresa Ralston, diretora de tecnologia de educação e formação de professores da Abril Educação.

O preço é também um atrativo. Superada a aquisição do próprio dispositivo (a partir de 1.700 reais, no caso do tablet, e 650 reais, para o leitor de ebook), compra-se obras de Machado de Assis e Eça de Queirós, por exemplo, por menos de 4 reais nas lojas virtuais da Apple e da Amazon. A versão impressa sai, no mínimo, pelo dobro. Na loja virtual Aldiko, para a tecnologia Android, sistema operacional que dá vida ao Galaxy Tab, há obras gratuitas – ainda em pequeno número em português, é verdade. Mas essa oferta deve crescer à medida que cresça a demanda – e vice-versa: a procura maior deve forçar a oferta de mais títulos. "A tendência é de expansão", diz Lerner, da Melhoramentos. Para quem ainda se assusta com a ideia de ver uma criança lendo clássicos próprios para a idade como A Ilha do Tesouro ou Vinte Mil Léguas Submarinas em um tablet, vale a lição de Ismar de Oliveira Soares, da USP: o que importa é o conteúdo.

FONTE: Revista Veja (25/02/2011)


Desafio aos professores: aliar tecnologia e educação

por Nathalia Goulart

Seja por meio de celular, computador ou TV via satélite, as diferentes tecnologias já fazem parte do dia a dia de alunos e professores de qualquer escola. Contudo, fazer com que essas ferramentas de fato auxiliem o ensino e a produção de conhecimento em sala de aula não é tarefa fácil: exige treinamento dos mestres. A avaliação é de Guilherme Canela Godoi, coordenador de comunicação e informação no Brasil da Unesco, braço da ONU dedicado à ciência e à educação. "Ainda não conseguimos desenvolver de forma massiva metodologias para que os professores possam fazer uso dessa ampla gama de tecnologias da informação e comunicação, que poderiam ser úteis no ambiente educacional." O desafio é mundial. Mas pode ser ainda mais severo no Brasil, devido a eventuais lacunas na formação e atualização de professores e a limitações de acesso à internet - problema que afeta docentes e estudantes. Na entrevista a seguir, Godoi comenta os desafios que professores, pais e nações terão pela frente para tirar proveito da combinação tecnologia e educação.

Qual a extensão do uso das novas tecnologias nas escolas brasileiras?

Infelizmente, não existem dados confiáveis que permitam afirmar se as tecnologias são muito ou pouco utilizadas nas escolas brasileiras. Censos educacionais realizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) mostram que a maioria das escolas públicas já tem à sua disposição uma série de tecnologias. No entanto, a presença dessas ferramentas não significa necessariamente uso adequado delas. O que de fato se nota é que ainda não conseguimos desenvolver de forma massiva metodologias para que os professores possam fazer uso dessa ampla gama de tecnologias da informação e comunicação, que poderiam ser úteis no ambiente educacional.

Quais devem ser as políticas públicas para incentivar as tecnologias em sala de aula?

Elas precisam ter um componente fundamental de formação e atualização de professores, de forma que a tecnologia seja de fato incorporada no currículo escolar, e não vista apenas como um acessório ou aparato marginal. É preciso pensar como incorporá-la no dia a dia da educação de maneira definitiva. Depois, é preciso levar em conta a construção de conteúdos inovadores, que usem todo o potencial dessas tecnologias. Não basta usar os recursos tecnológicos para projetar em uma tela a equação "2 + 2 = 4". Você pode escrever isso no quadro negro, com giz. A questão é como ensinar a matemática de uma maneira que só é possível por meio das novas tecnologias, porque elas fornecem possibilidades de construção do conhecimento que o quadro negro e o giz não permitem. Por fim, é preciso preocupar-se com a avaliação dos resultados para saber se essas políticas de fato fazem a diferença.

As novas tecnologias já fazem parte da formação dos professores?

Ainda é preciso avançar muito. Os dados disponíveis mostram que, infelizmente, ainda é muito incipiente a formação de professores com a perspectiva de criação de competências no uso das tecnologias na escola. Com relação à formação continuada, ou seja, à atualização daqueles profissionais que já estão em serviço, aparentemente nós temos avanços um pouco mais concretos. Há uma série de programas disponíveis que oferecem recursos a eles.

Para os alunos, qual o impacto de conviver com professores ambientados com as novas tecnologias?

As avaliações mais sólidas a esse respeito estão acontecendo no âmbito da União Europeia. Elas mostram que a introdução das tecnologias nas escolas aliada a professores capacitados têm feito a diferença em alguma áreas, aumentando, por exemplo, o potencial comunicativo dos alunos.

As relações dentro da sala de aula mudam com a chegada da tecnologia?

O que tem acontecido - e acho que isso é positivo, se bem aproveitado - é que a relação de poder professor-aluno ganha uma nova dinâmica com a incorporação das novas tecnologias. Isso acontece porque os alunos têm uma familiaridade muito grande com essas novidades e podem se inserir no ambiente da sala de aula de uma maneira muito diferente. Assim, a relação com o professor fica menos autoritária e mais colaborativa na construção do conhecimento.

É comum imaginar que em países com um alto nível educacional a integração das novas tecnologias aconteça mais rapidamente. Já em países em desenvolvimento, como o Brasil, onde muitas vezes o professor tem uma formação deficitária, a incorporação seja mais lenta. Esse pensamento é correto?

Grandes questões sobre o assunto não se colocam apenas para países em desenvolvimento. É o caso, por exemplo, de discussões sobre como melhor usar a tecnologia e como treinar professores. O mundo todo discute esses temas, porque essas novas ferramentas convergentes são um fenômeno recente. Porém, também é correto pensar que nações onde as pessoas são mais conectadas e têm mais acesso a dispositivos devem adotar a tecnologia em sala de aula de modo mais amplo e produtivo. Outro fenômeno detectado no mundo todo é o chamado "gap geracional", ou seja, os professores não nasceram digitalizados, enquanto seus alunos, sim.

O senhor vê algum tipo de resistência nas escolas brasileiras à incorporação da tecnologia?

Não acredito que haja uma resistência no sentido de o professor acreditar que a tecnologia é maléfica, mas, sim, no sentido de que ele não sabe como utilizar as novidades. Não se trata de saber ou não usar um computador. Isso é o menor dos problemas. A questão em jogo é como usar equipamentos e recursos tecnológicos em benefício da educação, para fins pedagógicos. Esse é o pulo do gato.

Quais os passos para superar a formação deficitária dos professores?

A Unesco sintetizou em livros seu material de apoio, chamado Padrões de Competências em Tecnologia da Informação e da Comunicação para Professores. Ali, dividimos o aprendizado em três grandes pilares. O primeiro é a alfabetização tecnológica, ou seja, ensinamos a usar as máquinas. O segundo é o aprofundamento do conhecimento. O terceiro pilar é chamado de criação do conhecimento. Ele se refere a uma situação em que as tecnologias estão tão incorporadas por professores e alunos que eles passam a produzir conhecimento a partir delas. É o caso das redes sociais. É importante lembrar que esse processo não é trivial, ele precisa estar inserido na lógica da formação do professor. Não se deve achar que a simples distribuição de equipamentos resolve o problema.

Fonte: Revista Veja(09/06/2010)